quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A Onda

Ela é a onda calma,
Repetitiva, infalível,
Que nunca é a mesma onda,
A quebrar na areia invencível.

Mas sempre haverá uma onda,
Sempre haverá, dia-a-dia,
A quebrar na tempestade,
Sem faltar na calmaria.

Sempre haverá uma onda,
De um coração a partir,
Para outro coração,
A se quebrar e sumir.

Momentos

Quisera ter momentos de escudo,
que não me atravessasse o pensamento.
Quisera ter momentos de escuro,
que as luzes não mostrassem meu tormento.

Quisera ter de mim alguns momentos,
que não fossem de passado ou de futuro,
que dissessem que essa angústia que acalento,
repousará um dia além do muro.

Mas a paz vem em momentos fugidios,
como a brisa mais leve e passageira
que aviva a chama tênue da fogueira.

Como o chuvisco cadente em pleno estio,
Que em cada gota traz a fé e o desafio,
de irrigar um centímetro que seja.

Márcio Ibiapina


In transitório amor

Nada mais será por mim compreendido,
Por minha voz nada mais será negado,
Enquanto seguir meu coração de dor ferido,
Ou não tiver o meu desejo saciado.

E as palavras nem sequer terão sentido,
A ter por base o sentir não completado,
E nada a mim será mais permitido,
Se o amor não puder ser explicado..

Mas o amor nunca se trai, nem é traído,
E dele não se extrai qualquer certeza,
E nunca nos responde se exigido.

E justo aí reside a sua beleza,
Como se fossem mil retalhos coloridos,
Costurados com a linha da surpresa.

Precisão

Eu quero a palavra imprevista.
Que venha bater à minha porta,
não fique à soleira, morta,
e nem se limite à batida.

Invada-me o pensamento,
liberte-me desse momento,
ocupe o lugar que precisa.

Eu quero a palavra exata,
a descrever sentimentos,
a eternizá-los no tempo,
daquilo que me escapa.

E quando chegado o momento,
que me invada o pensamento,
e se crave como faca.

Eu quero a palavra total.
Aquela palavra que cala,
na garganta toda fala,
definitiva e cabal.

E quando chegar o momento,
invada-me o pensamento,
decrete-me o ponto final.

Cegueira

Contemplo o teu rosto, calado,
Como quem olha um espelho insincero,
Em que a pessoa que vejo é a que espero,
Em nada distorcido ou mudado.

E assim sigo vendo o que quero,
Como quem segue sempre vendado,
Para enfim enxergar, magoado,
Que nada mais fui que um cego.

É que olhei, mas não vi o olhar,
Escutei, mas não ouvi qualquer voz,
E falei sem saber ecoar.

Nem sequer percebi, tão feroz,
No reflexo da imagem a cegar,
Minha própria figura de algoz.

Alter Ego

Eu conheço essa capa que te cobre,
que te permite levar os filhos ao colégio
e fingir uma permanente felicidade.

Eu conheço esse véu que te envolve,
que tu usas como se fosse o remédio
para as conversas educadas na cidade.

Eu conheço essa imagem que te sobra,
que tu levas junto a ti para o trabalho
como o segredo da invisibilidade.

Eu conheço a sensação que te invade,
e posso dizer: meu amigo,
jamais te chamaria de covarde.

Eu conheço esse véu que te abriga,
e que acalenta, bem distante,
um alter ego surdo, cego, mudo,
suicida.

Haikai

O tempo todo,
Todo o tempo:
Apenas um momento.

Efemeridade

A linha do pensamento,
Inconstante mensageira,
É a bruma em que experimento
A mutação mais ligeira.

E no instante perdido,
A forma perdida está.
Ah, pensamento bandido!
Por que não te aprisionar?

Entre dedos, esvaído,
Já não te posso apanhar,
Como a espuma que persigo,
Antes de o banho acabar.

Reciclagem Humana

Fonte:http://reciclato.wordpress.com/


No meio do lixo os homens se acumulam,
Como volumes no meio do monturo,
Como os sacos de lixo lançados no escuro,
Que durante o dia os urubus perfuram.

Essa a cena urbana que perscruto,
Desses seres que no lixo só procuram,
Onde as muitas vidas do mundo se misturam,
Catar as próprias vidas desse entulho.

Para, enfim, passear não mais cativos,
Colher os tenros frutos do cultivo,
Sentir-se continente e não mais ilha.

Viver todos os minutos de um dia,
Como quem se sabe obra que sacia,
E não a página arrancada de um livro.

Soneto da Imortalidade

Viver é reinventar-se a cada dia,
É construir o caminho a cada passo,
É o círculo perfeito do compasso:
Em cada ponto termina e principia.

E nesse recomeçar a cada traço,
Lançar-se sem medida, economia,
Deixar questões à vã filosofia,
E replicar em ti o vasto espaço.

Para quando vier a morte, feito aço,
Penetrar-te insondável e sorrateira,
Tu saibas no momento mais exato

Que foste imortal porque viveras,
Como se cada segundo contado,
Valesse uma vida inteira.

Soneto

O que eu puder falar aos astros esta noite,
Direi em um único sopro de verdade,
Fugindo a toda forma de vaidade,
Lembrando que a mentira é puro açoite.

Mas olho para o céu; não vejo a corte
Que a lua faz aos prédios da cidade,
E nem as estrelas conspiram em veleidade,
Somente as nuvens passam em negro coche.

E mil verdades morreram em minha boca,
E a esperança que era sã, tornou-se louca
Na luz difusa da mortiça madrugada.

E só me resta, então, sacar da pena avara,
Em busca do farol que se apaga
Na hora em que o nascente sol nos doura.

Exposição de Motivos

De que adianta tua alegria inconstante,
Se a tristeza é que alimenta a tua alma,
Se ela é que produz algo que o valha,
Que faz do coração algo pulsante?

De que adianta a solução que te atalha,
Se não a procuraste um só instante,
Se o ato que se propõe reconfortante,
Não partiu da conquista da batalha?

E a resposta antecipada, de que adianta?
Nada adianta neste mundo expectante,
Que nunca se sacia, nem descansa.

O melhor é tatear cego e errante,
Que o fastio do caminho em terra plana,
É desvio em que se perde o caminhante.

Velho Álbum

Dentro da velha caixa fechada
As fotografias dormem, esquecidas.
Embora eternizados momentos de uma vida,
É memória para sempre aprisionada.

Quantos, quantos instantes são perdidos,
Quanta história, assim, não é contada,
Quantos detalhes se vão pela jornada,
Embora a caminhada sempre siga.

E lentamente, enfim, vão se esgarçando
As lembranças dia a dia emolduradas
No templo do mero esquecimento.

E a vida tristemente vai passando,
Nas imagens em que foi colecionada,
Se não pôde se guardar o sentimento.

Soneto do Amanhecer

A campina verdejante chora no orvalho da manhã
Enquanto o gado apascentado mata fome e sede
A vista colhe a imensidão que existe e, vede,
Nem toda vocação humana é tão malsã.

A grama é ruminada e é sorvido o pranto
Que pleno desse campo se decanta e pende
Do céu não matizado entre o azul e o branco
Enquanto o sol não rasga e o horizonte acende.

E então nos doura o lume e o verde cede o instante
Na linha mais distante explode o céu luzente
E o dia, paciente, nasce exuberante.

E desce-me o orvalho à vista minha ausente
E mata a sede e a fome do meu peito exangue
A luz que cega os olhos para abrir-me a mente.

A Busca

A busca está acabada,
pois nada do que procuro
é aquilo que me falta.

Adiante

Vou seguir até cansar.
E quando cansar,
Vou seguir até desfalecer.
E quando acontecer,
Vou seguir, adiante, em pensamento.
Para, enfim, quando morrer,
Seguirem minhas cinzas pelo vento.

Moto-contínuo

Se há lógica no absurdo,
Do concreto inexistente,
É o findar inconcluso,
De um ser eternamente.

E do nada surge o tudo!
E moto-continuamente
O corpo se faz adubo,
A alma, de si, semente.

Poetempo

O hoje,
projeto de ontem,
promessa de amanhã,
deliciosamente se insinua
na mais bela das manhãs.

Padece, à tarde, de saudade.

E, à noite, já é desejo de semente que se guarde.

Soneto Epistemológico

É verdade o que contam na rua?
O que bradam com segura confiança?
Que essa certeza que carregam, um tanto crua,
Haverá de penetrar qual fina lança?

E que a janela abrirá, um tanto mansa,
Ante o torvelinho farto de angústia
A revelar a face turva da criança
Misturada a essa força torpe e bruta?

Minha única certeza não descansa
Em berço esplêndido, em braço de candura,
Mas no eito que nos dá a insegurança.

Como quem repousa sempre em pedra dura,
Por saber que tudo muda, tudo é mudança,
E que a certeza que se impõe é ditadura.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Enigma

Vai embora de mim o que mais quero
O que desejo com toda intensidade
Mas o que na vida vem, se não espero,
Nunca há de saciar minha vontade.

E em tal contradição é que me encerro
Ao contrário do que fora na verdade
Se quanto mais feliz me desespero
O escasso só me traz saciedade.

Sou forte na fraqueza, dor na paz,
Sou pobre na riqueza, cor sem luz,
E dúvida na certeza mais assaz.

Sou guia quando nada mais conduz,
Sou morte quando a vida diz que é mais
E nego a tudo o mais em que me pus.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Engodo

Vou seguindo pela vida, brevemente,
pois o espaço de uma vida é muito pouco,
para andar a perseguir os sonhos loucos,
para alcançar o horizonte persistente.

O lapso de uma vida é só um sopro,
no espaço da visão que sempre mente.
E conduz o nosso parco corpo à frente,
forjando nosso espírito no esforço.

E ao fim desse instante é que se sente
pela primeira vez o corpo não dormente
e a verdade penetrar até o osso.

A despertar o pesadelo, consciente,
de que a vida mais terrena é, tolamente,
mero ensaio para a escuridão do fosso.

Minha Terra

Ao Poeta e conterrâneo Ricardo Reis, verdadeiro menestrel dessa terra para sempre encartada em nossa memória.


Um dia avistei o imenso mar,
Mas no mar senti saudades do açude,
Que na época chuvosa, a sangrar,
Irriga o seco chão que desilude.

E a grande metrópole que avistara,
Fizera-me ainda mais perto de minha terra,
Como se a distância maior que já andara,
Pusesse-me sempre, e mais, em sua esfera.

A serra no horizonte, emoldurada,
Os extraordinários carnavais,
Festejos prosseguindo nas barracas,
E procissões fluindo em seus canais.

Carnaúba com seu tronco de couraça,
Carne seca quarando nos varais,
Sutil aroma de terra molhada,
Saciada nos invernos temporais.

Nos marços, jenipapo relembrado,
Independência em lutas marciais,
Heróis no obelisco, pranteados,
Em versos de poetas imortais.

Cadeiras nas esquinas, nas calçadas,
Sugerem as cantilenas mais banais,
Notícias dos amigos, sim, nos traga,
Do tipo que não contam os jornais.

Notícias dessa terra tão distante,
Terra minha que do peito não se apaga,
Reconquista demarcada em cada instante,
Em que a mente, livre mente, assim divaga.

Escatológico

Acaba-se tudo um dia.
Ilusão pensar que ia
durar a sua ilusão.
Acaba-se o ódio e o amor,
inconforme-se como for,
destino é simples versão.

Motivos mínimos

Este é um blog dedicado à poesia. A de grandes poetas universais e à minha, que raramente não passa de um chocalho de palavras...
O nome? O nome é inspirado em uma poesia de Mário Quintana apropriadamente denominada...


Projeto de prefácio


Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um
[detalhe
Um poema não é também quando paras no fim
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba
[preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!


*Do livro O Baú de Espantos.