Voa no alto céu, longe do chão,
com a liberdade de quem é feliz,
pois a tristeza dorme no porão,
de onde a inveja ergueu sua matriz.
Como escreveu Mário Quintana: [...] Um poema não é para te distraíres como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios. Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe Um poema não é também quando paras no fim porque um verdadeiro poema continua sempre... Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Conselho
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Excerto de Júlio Dinis
"Os mártires que se analisam, e nos fazem resenha e inventário dos seus tormentos; esses que, todos os dias, desenvolvem em estilo imaginoso a fisiologia do próprio coração indagam a teoria do padecer, que, dizem eles, os tortura e o fazem com uma profundeza de vistas, verdadeiramente filosófica... esses mártires... para falar a verdade, não creio muito neles. Quem sofre deveras, tenho eu para mim, acha-se com pouca vontade de esquadrinhar os mistérios do sofrimento e não se põe com grandes filosofias a esse respeito."
Júlio Dinis - pseudônimo do escritor português Joaquim Guilherme Coelho Gomes (1839-1871)- in "As Pupilas do Senhor Reitor"
terça-feira, 1 de junho de 2010
DESEJO
Não desejo escrever um poema por dia,
Mas viver um dia por poema,
Encher todos os dias de poesia
E não a poesia de problemas.
Mas viver um dia por poema,
Encher todos os dias de poesia
E não a poesia de problemas.
Complexo obituário
É a hora, hora que se faz
Triste para o que chora
O bom homem que se vai
Ao certo fim que ignora.
Mas se outro comemora
O corpo que ali vai,
É certo que não o adora,
Nenhuma lágrima cai.
Ama quem chora o valente
Ri o outrora inimigo,
Terá razão o contente?
Terá razão o contrito?
Mas o conflito é aparente,
Ninguém é santo ou bandido
Assim tão completamente,
À parte o maniqueísmo.
sábado, 29 de maio de 2010
Microcosmo
De repente, percebi que
Me espiava o mato crescendo
No canteiro da janela
Enquanto o arrancava.
De repente vi a pedra
Entre as muitas pedras
Dos lanços da escada
Ser pisada.
De repente, vi tudo
Muito lentamente
Se despejando
quando a água suja
Fora retirada.
De repente,
Vi que o tempo
Era apenas uma máquina
Que contava cada momento
Que contava.
E agora nada mais
Será como antes,
Agora que enxerguei
o que antes só olhava.
E ao mirar em mim,
não me surpreendi
ser a primeira vez
que me encontrava.
E agora nada mais
Será como antes,
Agora que enxerguei
o que antes só olhava.
E ao mirar em mim,
não me surpreendi
ser a primeira vez
que me encontrava.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Contexto
As palavras, assim como as pessoas, nunca são por si sós, sempre estão para serem. São por estarem.
O que seria da palavra amar, "verbo intransitivo" cantado em versos mil se não fosse o ser amado, que qualifica e identifica esse amor infinito?
Que seria do ódio se não fosse o que se odeia?
Que seria dos nomes se não fossem as pessoas, os animais, as coisas?
Seriam objetos na prateleira de um aposento escuro, sem uso e sem sentido.
Por isso as palavras somente são quando estão.
São como nós, personagens de uma composição em andamento, à espera de um fim que faça sentido.
O que seria da palavra amar, "verbo intransitivo" cantado em versos mil se não fosse o ser amado, que qualifica e identifica esse amor infinito?
Que seria do ódio se não fosse o que se odeia?
Que seria dos nomes se não fossem as pessoas, os animais, as coisas?
Seriam objetos na prateleira de um aposento escuro, sem uso e sem sentido.
Por isso as palavras somente são quando estão.
São como nós, personagens de uma composição em andamento, à espera de um fim que faça sentido.
quarta-feira, 24 de março de 2010
Máximas de Um Poeta Mínimo
Ninguém que padece
Sabe o que é a dor,
Nem consegue.
Ninguém que prende
Sabe o que é o desprendimento,
Nem aprende.
Ninguém que adula
Sabe o que é o sentimento,
Mas simula.
Ninguém que crê
Sabe o que a crença é,
Mas tem fé.
Ninguém que grita
Sabe o que é o silêncio,
Nem cogita.
Ninguém que pensa
Sabe o que é o pensamento,
Nem compensa.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
SOU
Serei faca, serei corte,
Serei dado, serei sorte,
Serei um dia da morte,
Mas hoje sou só da vida.
Serei choro, serei cruz,
Serei caixão no buraco,
Serei corte, serei pus,
Mas hoje sigo na lida.
Serei, um dia, no futuro,
Como muitos ancestrais,
Aquele que já passou.
Serei adubo obscuro
E semente de algo mais
Um dia serei. Hoje sou.
Serei dado, serei sorte,
Serei um dia da morte,
Mas hoje sou só da vida.
Serei choro, serei cruz,
Serei caixão no buraco,
Serei corte, serei pus,
Mas hoje sigo na lida.
Serei, um dia, no futuro,
Como muitos ancestrais,
Aquele que já passou.
Serei adubo obscuro
E semente de algo mais
Um dia serei. Hoje sou.
sábado, 30 de janeiro de 2010
Outro Mundo
A menina correu, com delicadeza, sobre os sinuosos padrões geométricos, em preto e branco, que pavimentavam toda a extensão do passeio ao longo da Avenida Atlântica. Passou pelo banco onde a estátua de Carlos Drummond de Andrade repousava sossegado e finalmente pousou, como borboleta, no colo do pai, que olhava distraidamente para longe, onde ar e água se separavam apenas por uma tênue linha. Àquela altura, fim de tarde, a maré baixa fazia com que pequenas marolas morressem entre espumas. As quadras já estavam vazias e os poucos jogadores remanescentes conversavam displicentemente, celebrando o cansaço fútil.
- Pai? – chamou a menina, tirando-o da contemplação marítima.
Mas o pai não lhe prestou atenção. Baixou os olhos para a mesa, onde repousava um notebook em que ele lia alguma coisa a espaços regulares.
- Pai, vamos conhecer o Forte hoje? Você prometeu!
- Agora não.
- Pois então vamos dar um passeio?
- Hoje não, filhinha, papai tá pesquisando uma coisa!
- Que coisa?
- Uma coisa, filha.
- Que coisa? – ela insistiu, curiosa.
- Uma viagem.
- Pra onde? Pra Disney?
- Não, pra um lugar mais legal. Um dia vamos conhecer o Caribe! Não é ótimo?
- Não sei. O que tem lá?
Ele refletiu por um momento. Queria que a filha de cinco anos entendesse o quanto aquela viagem, que ele sonhava em realizar dentro de alguns anos, seria uma coisa extraordinária.
- Ah filha, lá é muito bonito!
- Bonito como?
- Tem tudo que tem aqui, só que muito mais bonito!
- Tem o Forte, o Cristo, o bondinho?
- Não, mas deve ter muitas outras coisas interessantes por lá.
- O que, por exemplo?
- Por exemplo – ele pensou por um minuto antes de responder – Por exemplo, dá pra ver os peixinhos na água. É cristalina!
- O que é cristalina?
- É transparente.
- Ah, como no aquário lá de casa?
Embora ele achasse que a comparação desmerecia o Caribe, acabou por concordar para encurtar a conversa. Baixou os olhos novamente para a tela, em que trocava mensagens com uma agência de viagem.
- Pai! Olha que bonito! – E a menina apontou, para além dos banhistas, um grande transatlântico que passava ao largo.
- É, filha, é num desses que a gente vai viajar um dia – disse o homem, mal olhando.
Depois de algum tempo a menina voltou à carga:
- Pai, quando vai ser esse dia?
- Não sei, filha, ainda estou pesquisando.
-E agora? Agora a gente pode dar um mergulho? Tá tão bom! – suplicou a menina, lançando olhares de cobiça para as minúsculas piscinas que se formavam com a vazante.
- Não! Tô ocupado filhinha! Agora você vai brincar e deixar o papai olhar isso aqui, certo?. -E se curvou sobre o computador, deleitando-se com uma apresentação de imagens paradisíacas que a agência lhe havia mandado.
Enquanto a filha borboleteava em volta, o homem nem sequer percebeu que a tarde morria, banhando, com seus matizes sanguíneos, o Forte, os prédios, as pessoas, a menina, a si próprio e o computador, que luzia e luzia com as maravilhas de um outro mundo.
Márcio Ibiapina
sábado, 23 de janeiro de 2010
Nova Arquitetura
O pensar é sorte.
Abandone o macio,
No mar de escombros
Construo sonhos
Ou arquiteto o vazio.
O teto sustenta-se sem paredes?
O homem contenta-se em ser ele?
Há tanta coisa à minha frente
Que não enxergo a parede,
Mas somente o horizonte.
Abandone o macio,
No mar de escombros
Construo sonhos
Ou arquiteto o vazio.
O teto sustenta-se sem paredes?
O homem contenta-se em ser ele?
Há tanta coisa à minha frente
Que não enxergo a parede,
Mas somente o horizonte.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
Semeadura
O futuro túmulo, nem escavado,
Ainda chão, sem mais nem nada,
Seco ou, na chuva, enlameado,
Pasto da grama que brotava,
Por entre os sulcos do cercado,
Como da cerca de uma casa,
Vivia em repouso decantado,
Sem saber o que esperava.
Quando, enfim, tempo chegado
De servir ao que prestava,
O que lhe havia reservado
O destino que mandava.
Não era o algaravio do arado
que em sulcos lhe rasgava
o ventre retangular.
Mas o esquife lacrado,
Qual semente que tornava
Depois de frutificar.
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