domingo, 16 de maio de 2021

Sem título

 

Estou certo, acertando o erro

Estou cego, enxergando o nulo

Estou perto, afastando o elo

Estou sério, de riso profundo.


Estou louco, pelo que enxergo

Estou bélico, que a paz adulo

Estou prático, pelo meu discurso

Estou prosa, de entrar no verso.


E sou eu o culpado único 

E recuo, ao mesmo tempo uno

E abraço, em busca do remédio

E recluso, enquanto espero o outro 

Mas sou outro, com o mesmo ego

Tão fugaz, quanto ser eterno.


Poema da Instalação


O   que importa para a arte é a vida.

Na verdade, a vida é pura arte.

A arte-conceito de quem não duvida

do absurdo que se chama realidade.


Cada um de nós, uma instalação

de dores, de cores, dons, possibilidades;

às vezes alguém, prestando atenção,

enxerga através do filtro da verdade.


Somos pinturas, livros, poesias.

Somos esculturas, culturas, mensagens

nos grafites dos muros urbanos,

desenhos gigantes nas paragens.


Rupestres, pedestres, estranhos,

iguais, desiguais, lutos, postagens,

mais parecidos do que pensamos,

menos humanos, mais personagens.


sábado, 1 de maio de 2021

Excerto do livro A Peste, de Albert Camus, onde se percebe a incredulidade ante os flagelos e seus números, quando tratados impessoalmente.

    

 "A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.

Mesmo depois de o Dr. Rieux ter reconhecido, diante do amigo, que um punhado de doentes dispersos acabavam de morrer da peste, sem aviso, o perigo continuava irreal para ele. Simplesmente, quando se é médico, faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginação. Ao olhar pela janela sua cidade que não mudara, era com dificuldade que Rieux sentia nascer dentro de si esse ligeiro temor diante do futuro, que se chama inquietação. Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre a doença. Flutuavam números na sua memória, e dizia a si próprio que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação. O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas em um só dia. Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer. Juntam-se as pessoas à saída de cinco cinemas para conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer aos montes para se compreender alguma coisa. Ao menos, poder-se-iam colocar alguns rostos conhecidos nesse amontoado anônimo Mas, naturalmente, isso é impossível de realizar, e depois, quem conhece dez mil rostos?"


Albert Camus (1913-1960), filósofo e escritor franco-argelino, em seu livro "A peste".