“O céu me fez
formosa, dizeis, e de tal maneira que minha formosura vos leva a me
amar sem resistência, e pelo amor que me mostrais, dizeis e até
quereis que eu seja obrigada a vos amar. Eu sei, com o natural
entendimento que Deus me deu, que tudo o que é belo pode ser amado;
mas não compreendo que, pela razão de ser amado, quem é amado por
belo tenha obrigação de amar quem o ama. E ainda poderia acontecer
que o amante do belo fosse feio e, sendo o feio digno de ser
desprezado, fica mal dizer: ‘Amo-te porque és bela: deves me amar
embora eu seja feio’. Mas, mesmo que as belezas se equivalham, nem
por isso haverão de ser iguais os desejos, pois nem todas as belezas
apaixonam: algumas alegram a vista mas não subjugam a vontade. Se
todas as belezas apaixonassem e subjugassem, as vontades andariam
desorientadas e confusas, sem saber onde iriam parar, porque, sendo
infinitas as pessoas belas, infinitos haveriam de ser os desejos. E,
conforme ouvi dizer, o amor verdadeiro não se divide e deve ser
voluntário, não forçado. Sendo assim, como penso que é, por que
quereis que submeta minha vontade à força, apenas porque me dizeis
que me amais? Se não, dizei-me: se em vez de formosa o céu me
tivesse feito feia, seria justo que me queixasse de vós por não me
amardes? Depois, deveis considerar que eu não escolhi: o céu deu-me
a beleza que tenho de graça, sem que eu a pedisse nem escolhesse. E,
assim como a víbora não merece ser culpada pelo veneno que tem,
apesar de matar com ele, porque lhe foi dado pela natureza, também
eu não mereço ser repreendida por ser bela: a beleza na mulher
honesta é como o fogo afastado ou como a espada afiada, porque nem
ele queima nem ela corta quem deles não se aproxima. A honra e as
virtudes são adornos da alma, sem os quais o corpo não deve parecer
belo, embora o seja. Pois, se a honestidade é uma das virtudes que
ao corpo e à alma mais adornam e embelezam, por que deve perdê-la a
que é amada por ser bela, para satisfazer a intenção daquele que,
apenas para seu próprio prazer, com todas as suas forças e astúcias
procura que a perca? “Eu nasci livre e, para poder viver livre,
escolhi a solidão dos campos: as árvores destas montanhas são
minha companhia; as águas cristalinas destes riachos, meus espelhos;
às árvores e às águas comunico meus pensamentos e formosura. Sou
fogo afastado e espada distante. Aos que apaixonei com a vista
desiludi com as palavras; e, se os desejos se sustentam com
esperanças, não tendo eu dado nenhuma a Grisóstomo, nem a algum
outro (na verdade, a nenhum deles), bem se pode dizer que antes o
matou sua teimosia do que minha crueldade. E, se alegardes que seus
pensamentos eram honestos e que por isso estava obrigada a
satisfazê-los, digo que quando me revelou a honestidade de sua
intenção, neste mesmo lugar onde agora se cava sua sepultura, eu
disse a ele que a minha era viver em perpétua solidão e que apenas
a terra gozasse o fruto de meu recolhimento e os despojos de minha
formosura; e se ele, apesar de tudo, quis lutar contra a esperança e
navegar contra o vento, quem se admira que se afogasse no meio do
oceano de seu desatino? Se eu o encorajasse, seria falsa; se o
contentasse, seria contra minhas melhores intenções e propósitos.
Teimou desiludido, desesperou sem ser desprezado: vede então se deve
se jogar em mim a culpa de sua pena! Queixe-se o enganado;
desespere-se aquele a quem faltaram as prometidas esperanças! Tenha
confiança o que eu chamar; gabe-se o que eu aceitar. Mas não me
chame de cruel nem de homicida aquele a quem eu não prometo, não
engano, não chamo nem aceito. “Até agora o céu não quis que eu
amasse por destino, e pensar que eu tenho de amar por escolha é
inútil. Que esse desengano geral sirva de lição, para seu
particular proveito, a cada um dos que me cortejam, e que se entenda
daqui por diante que, se algum morrer por mim, não morre de ciúmes
nem de infelicidade, pois quem não ama ninguém a ninguém deve
causar ciúme, pois os desenganos não devem ser tomados por desdéns.
O que me chama de fera e basilisco, deixe-me como coisa nociva e má;
o que me chama de ingrata, não me corteje; de mal-agradecida, não
me conheça; de cruel, não me siga; porque esta fera, este
basilisco, esta ingrata, esta mal-agradecida e cruel nem vos
procurará, cortejará, conhecerá nem seguirá de forma alguma. “Se
a Grisóstomo matou sua impaciência e desejo impetuoso, por que se
deve culpar meu honesto procedimento e recato? Se eu conservo minha
pureza em companhia das árvores, por que devem querer que a perca em
companhia dos homens? Como sabeis, sou rica e não cobiço as
riquezas alheias; sou de temperamento livre, não gosto de me
sujeitar; não amo nem odeio ninguém; não engano este nem cortejo
aquele; não zombo de um nem me divirto com outro. A conversa honesta
das pastoras destas aldeias e o cuidado com minhas cabras me
distraem. Meus desejos se limitam a estas montanhas e, se daqui saem,
é para contemplar a formosura do céu, passos com que anda a alma
para sua primeira morada.”
Miguel de Cervantes, 1547-1616, dando voz à pastora Marcela, em seu "Dom Quixote"