segunda-feira, 22 de junho de 2020

Alter Ego

Serei, até o fim,

Como se fosse outro 

Ser a me tornar,

Um ser melhor,

Com mais vagar,

Um personagem 

De algum outro lugar.


Mantém conversas, 

Trabalha e ri,

Posta nas teias sociais 

A melhor versão de si.

Um alter ego a mais

 Do que eu mesmo pretendi.


É um espanto tremendo

Ser assim,

Sentindo, todo o tempo,

Um outro ser viver por mim.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Soneto

Mário Faustino – o lapidador de palavras - Templo Cultural Delfos


Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.

Mário Faustino, 1930-1962, "O Homem e sua Hora e outros poemas".

terça-feira, 5 de maio de 2020

O homem absurdo


Sou, repetindo o dia a dia, mero tolo
por querer, ainda assim, ver objeto
em minhas idas e vindas sem consolo
que não o de ser consciente do trajeto?


Desatino sem propósito, mas com afeto
pelo Sísifo que eleva a pedra ao morro,
esperando que não ceda ao próprio inferno,
mas que ande obstinado e curioso.


No absurdo desse mundo feito eco,
guardo a lucidez no próprio esforço
em desafio ao labirinto sempiterno.


E a verdade que penetra até o osso,
já não me incomoda se a enxergo.
Consciente, já não posso mais ser morto.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Excerto de Aldous Huxley, refletindo sobre o tempo concretizado no presente.

Aldous Huxley – Wikipédia, a enciclopédia livre


"O relógio tiquetaqueava. O instante em movimento que, segundo Sir Isaac Newton, separa o passado infinito do infinito futuro avançava inexoravelmente através da dimensão do tempo. Ou, a crer em Aristóteles, um pouco mais do possível a cada instante se tornava real; o presente imobilizava-se e ia incorporando a si o futuro, como um homem que ficasse engolindo para sempre uma fita de macarrão sem fim."

Aldous Huxley, 1894-1963, em seu romance "Contraponto".

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Excerto de Cervantes, no qual, dentre outras reflexões, preconiza a liberdade feminina e lhe recusa o papel de "objeto".



Miguel de Cervantes - Biografia - UOL Educação


O céu me fez formosa, dizeis, e de tal maneira que minha formosura vos leva a me amar sem resistência, e pelo amor que me mostrais, dizeis e até quereis que eu seja obrigada a vos amar. Eu sei, com o natural entendimento que Deus me deu, que tudo o que é belo pode ser amado; mas não compreendo que, pela razão de ser amado, quem é amado por belo tenha obrigação de amar quem o ama. E ainda poderia acontecer que o amante do belo fosse feio e, sendo o feio digno de ser desprezado, fica mal dizer: ‘Amo-te porque és bela: deves me amar embora eu seja feio’. Mas, mesmo que as belezas se equivalham, nem por isso haverão de ser iguais os desejos, pois nem todas as belezas apaixonam: algumas alegram a vista mas não subjugam a vontade. Se todas as belezas apaixonassem e subjugassem, as vontades andariam desorientadas e confusas, sem saber onde iriam parar, porque, sendo infinitas as pessoas belas, infinitos haveriam de ser os desejos. E, conforme ouvi dizer, o amor verdadeiro não se divide e deve ser voluntário, não forçado. Sendo assim, como penso que é, por que quereis que submeta minha vontade à força, apenas porque me dizeis que me amais? Se não, dizei-me: se em vez de formosa o céu me tivesse feito feia, seria justo que me queixasse de vós por não me amardes? Depois, deveis considerar que eu não escolhi: o céu deu-me a beleza que tenho de graça, sem que eu a pedisse nem escolhesse. E, assim como a víbora não merece ser culpada pelo veneno que tem, apesar de matar com ele, porque lhe foi dado pela natureza, também eu não mereço ser repreendida por ser bela: a beleza na mulher honesta é como o fogo afastado ou como a espada afiada, porque nem ele queima nem ela corta quem deles não se aproxima. A honra e as virtudes são adornos da alma, sem os quais o corpo não deve parecer belo, embora o seja. Pois, se a honestidade é uma das virtudes que ao corpo e à alma mais adornam e embelezam, por que deve perdê-la a que é amada por ser bela, para satisfazer a intenção daquele que, apenas para seu próprio prazer, com todas as suas forças e astúcias procura que a perca? “Eu nasci livre e, para poder viver livre, escolhi a solidão dos campos: as árvores destas montanhas são minha companhia; as águas cristalinas destes riachos, meus espelhos; às árvores e às águas comunico meus pensamentos e formosura. Sou fogo afastado e espada distante. Aos que apaixonei com a vista desiludi com as palavras; e, se os desejos se sustentam com esperanças, não tendo eu dado nenhuma a Grisóstomo, nem a algum outro (na verdade, a nenhum deles), bem se pode dizer que antes o matou sua teimosia do que minha crueldade. E, se alegardes que seus pensamentos eram honestos e que por isso estava obrigada a satisfazê-los, digo que quando me revelou a honestidade de sua intenção, neste mesmo lugar onde agora se cava sua sepultura, eu disse a ele que a minha era viver em perpétua solidão e que apenas a terra gozasse o fruto de meu recolhimento e os despojos de minha formosura; e se ele, apesar de tudo, quis lutar contra a esperança e navegar contra o vento, quem se admira que se afogasse no meio do oceano de seu desatino? Se eu o encorajasse, seria falsa; se o contentasse, seria contra minhas melhores intenções e propósitos. Teimou desiludido, desesperou sem ser desprezado: vede então se deve se jogar em mim a culpa de sua pena! Queixe-se o enganado; desespere-se aquele a quem faltaram as prometidas esperanças! Tenha confiança o que eu chamar; gabe-se o que eu aceitar. Mas não me chame de cruel nem de homicida aquele a quem eu não prometo, não engano, não chamo nem aceito. “Até agora o céu não quis que eu amasse por destino, e pensar que eu tenho de amar por escolha é inútil. Que esse desengano geral sirva de lição, para seu particular proveito, a cada um dos que me cortejam, e que se entenda daqui por diante que, se algum morrer por mim, não morre de ciúmes nem de infelicidade, pois quem não ama ninguém a ninguém deve causar ciúme, pois os desenganos não devem ser tomados por desdéns. O que me chama de fera e basilisco, deixe-me como coisa nociva e má; o que me chama de ingrata, não me corteje; de mal-agradecida, não me conheça; de cruel, não me siga; porque esta fera, este basilisco, esta ingrata, esta mal-agradecida e cruel nem vos procurará, cortejará, conhecerá nem seguirá de forma alguma. “Se a Grisóstomo matou sua impaciência e desejo impetuoso, por que se deve culpar meu honesto procedimento e recato? Se eu conservo minha pureza em companhia das árvores, por que devem querer que a perca em companhia dos homens? Como sabeis, sou rica e não cobiço as riquezas alheias; sou de temperamento livre, não gosto de me sujeitar; não amo nem odeio ninguém; não engano este nem cortejo aquele; não zombo de um nem me divirto com outro. A conversa honesta das pastoras destas aldeias e o cuidado com minhas cabras me distraem. Meus desejos se limitam a estas montanhas e, se daqui saem, é para contemplar a formosura do céu, passos com que anda a alma para sua primeira morada.”

Miguel de Cervantes, 1547-1616, dando voz à pastora Marcela, em seu "Dom Quixote"

quinta-feira, 26 de março de 2020

Excerto de Luigi Pirandello, dando-nos uma perspectiva para refletir.



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"Estamos ou não estamos num invisível piãozinho, para o qual um fio de sol serve de chicote, num grãozinho de areia enlouquecido que gira e continua a girar, sem saber por quê, sem chegar nunca ao seu destino, como se achasse muito divertido girar assim, para fazer-nos sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e, no fim, fazer-nos morrer (com freqüência, com a consciência de ter cometido uma série de pequenas tolices), após cinqüenta ou sessenta giros?"

Luigi Pirandello, escritor italiano (1867-1936), em "O Falecido Mattia Pascal".

Excerto de Bernardo Guimarães, sobre a utilidade da discordância ou já antecipando que a unanimidade é burra.



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"Seu espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às instituições e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéias excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo, longe de perturbar ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia antes para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia que deve reinar nas relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que uma quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem, enjoadas de tanto se dizerem - amém, - ver-se-ão forçadas a recolherem-se ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta amizade!... De mais, a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras."

Excerto de Bernardo Guimarães, escritor brasileiro (1825-1884), em "A Escrava Isaura".