domingo, 1 de novembro de 2015

O mito da intimidade

Diz-se que a intimidade
é deusa mitológica e improvável,
nascida na gênese do pensamento
ainda guardado na recôndita reflexão,
hermética.


E no momento exato que nasce,
morre, pois a luz do mundo
obscurece o que não pode
ter sentido senão oculto.


Viveu enquanto reclusa
em castelos invencíveis
em desejos invisíveis
em imagens nunca
gravadas.


Vítima da curiosidade mórbida
do mundo moderno,
foi transformada em constelação
no espaço cósmico,
de estrelas tão distantes
cuja luz jamais chegará à terra.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Instantâneo impermanente

Diz-se que a fotografia
é um instantâneo fiel,
mas quase nunca alivia
examinar seu papel.

Nada me diz o que vejo,
não me lembra o que vivi.
E ao olhar o espelho
eu mesmo não percebi.

Que neste momento exato,
já sou outro ser humano;
em cada segundo mudado,
exceto em seguir mudando.

terça-feira, 5 de maio de 2015

A boca que habita o verso

O hálito habita a boca.
Habitam a boca os dentes.
Os dentes circundam a língua,
a língua móvel na gente.

A gengiva habita a boca.
Habita um céu sem estrelas.
Há saliva boca adentro
e boca afora há poeira.

Habita a boca a palavra,
escorregando da mente.
É sempre de sua lavra
falar a palavra, urgente.

Habita a boca a lembrança
do beijo e do queijo bons.
Habita a boca o remédio,
o desagrado e seus tons.

Habita a boca a recusa.
Fechada não entra mosca.
Aberta não é reclusa.
A boca, banguela, é oca.

O sopro que a habita
apaga o fogo da vela
e é o sopro que atiça
a centelha mais singela.

Habita a boca o reclamo
se algo vem nos ferir,
Mas se escancara em derramo
para o que a faz sorrir.

A boca que tem berrado,
sussurra bem de mais perto
e beija no rosto amado
e cospe no desafeto.

Habita a boca o espanto,
o beijo de mãe que cura,
toda a beleza do canto
e o nascer da leitura.

Habita a boca a bebida.
Com muita sede, secura.
Nas refeições, a comida
que ela acolhe e tritura.

Habita a boca o espirro,
a tosse desde o pulmão,
mas também há o suspiro
de saudade ou de paixão.

Verborragia é tão fácil,
difícil é parar assim.
À boca, então, o epitáfio:
calou somente no fim.