quarta-feira, 13 de abril de 2022

Acerca das possibilidades


entre o que é possível
e o que não é,
existe um mundo inteiro
de possibilidades que
levam a destinos diferentes
do que no início se quer.

e ser resiliente

não é permanecer

em uma única trilha

para sempre;

mas não esquecer

dos outros caminhos

que te pertencem.


terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Zeitgeist

 Não existe mais lucidez, artigo raro e preciso.

Os fatos não são cabais, pois em versões convertidos.

O dia a dia envolvido em tempestade infinita

E o sentir, soterrado, na enxurrada desliza.


É a dialética imposta, como comum, nessa vida:

Há os que ficam calados, só esperando a batida,

Enquanto outros invadem, com fome de precipício,

A sufocar os demais, como se fosse um alívio.


Mas sei que alguém gritará, quando soarem os tiros.

Será a voz sem descanso, quando partirem pra cima.

E quando a luz apagar, o que acende o motivo.


Pois, mesmo depois do fim, o ser humano é o princípio

De uma mensagem que fica, até depois de esquecida,

Como arredio fantasma, depois de um homicídio.

Resiliência

 Já não era tudo

O vazio que assusta;

Já não era nada

Toda aquela luta.

A perspectiva aprendi

desde cedo:

Estar vivo

Mesmo a esmo.

domingo, 16 de maio de 2021

Sem título

 

Estou certo, acertando o erro

Estou cego, enxergando o nulo

Estou perto, afastando o elo

Estou sério, de riso profundo.


Estou louco, pelo que enxergo

Estou bélico, que a paz adulo

Estou prático, pelo meu discurso

Estou prosa, de entrar no verso.


E sou eu o culpado único 

E recuo, ao mesmo tempo uno

E abraço, em busca do remédio

E recluso, enquanto espero o outro 

Mas sou outro, com o mesmo ego

Tão fugaz, quanto ser eterno.


Poema da Instalação


O   que importa para a arte é a vida.

Na verdade, a vida é pura arte.

A arte-conceito de quem não duvida

do absurdo que se chama realidade.


Cada um de nós, uma instalação

de dores, de cores, dons, possibilidades;

às vezes alguém, prestando atenção,

enxerga através do filtro da verdade.


Somos pinturas, livros, poesias.

Somos esculturas, culturas, mensagens

nos grafites dos muros urbanos,

desenhos gigantes nas paragens.


Rupestres, pedestres, estranhos,

iguais, desiguais, lutos, postagens,

mais parecidos do que pensamos,

menos humanos, mais personagens.


sábado, 1 de maio de 2021

Excerto do livro A Peste, de Albert Camus, onde se percebe a incredulidade ante os flagelos e seus números, quando tratados impessoalmente.

    

 "A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.

Mesmo depois de o Dr. Rieux ter reconhecido, diante do amigo, que um punhado de doentes dispersos acabavam de morrer da peste, sem aviso, o perigo continuava irreal para ele. Simplesmente, quando se é médico, faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginação. Ao olhar pela janela sua cidade que não mudara, era com dificuldade que Rieux sentia nascer dentro de si esse ligeiro temor diante do futuro, que se chama inquietação. Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre a doença. Flutuavam números na sua memória, e dizia a si próprio que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação. O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas em um só dia. Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer. Juntam-se as pessoas à saída de cinco cinemas para conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer aos montes para se compreender alguma coisa. Ao menos, poder-se-iam colocar alguns rostos conhecidos nesse amontoado anônimo Mas, naturalmente, isso é impossível de realizar, e depois, quem conhece dez mil rostos?"


Albert Camus (1913-1960), filósofo e escritor franco-argelino, em seu livro "A peste".

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Excerto de Miguel de Cervantes, sobre como é importante a contínua ação de uma figura garante, para assegurar o cumprimento de direitos fundamentais.

 

    



    Não havia andado muito quando lhe pareceu que de sua direita, de dentro de um mato, saíam uns gemidos delicados, como de pessoa que se queixava. Mal os ouviu, disse:
    — Dou graças ao céu pela mercê que me concede, pois tão cedo me dá oportunidade para que eu possa cumprir com o que devo a minha profissão e possa colher o fruto de meus bons desejos. Esses gemidos, sem dúvida, são de algum desamparado ou desamparada que necessita de meu favor e ajuda.
    E, virando as rédeas, encaminhou Rocinante para o lugar de onde pareciam vir os gemidos. Poucos passos depois de ter entrado no mato, viu uma égua amarrada a uma azinheira e, amarrado em outra, um rapaz por volta dos quinze anos, nu da cintura para cima. Era ele quem gemia, e não sem causa, porque um camponês de bom tamanho o surrava com um cinto, acompanhando cada lambada com uma repreensão e conselho. Dizia:
    — Boca fechada e olho vivo!
    E o rapaz respondia:
    — Não farei de novo, meu senhor! Pelo amor de Deus, não farei de novo! Eu prometo daqui por diante ter mais cuidado com o rebanho.
    Dom Quixote, vendo o que se passava, disse com voz indignada:
    — Descortês cavaleiro, não fica bem espancar quem não pode se defender; montai vosso cavalo e empunhai vossa lança — realmente havia uma lança escorada na azinheira onde a égua estava presa —, que eu vos farei saber que é coisa de covarde o que estais fazendo.
    O camponês, que viu aquela figura de armadura brandindo a lança diante de seu rosto, deu-se por morto e respondeu com palavras reverentes:
    — Senhor cavaleiro, este rapaz que estou castigando é meu criado, cuida de um rebanho de ovelhas que tenho por estas bandas. Mas é tão descuidado que todo dia me falta uma; e porque castigo sua falta de cuidado, ou velhacaria, diz que o faço por avarento, para não lhe pagar o salário que devo. Por Deus, e por minha alma, ele mente.
    — “Mente” em minha presença, vilão desgraçado? — disse dom Quixote. — Pelo sol que nos ilumina que estou para trespassar-vos de fora a fora com esta lança.
    Pagai-lhe logo sem mais conversa; se não, pelo Deus que nos guia, eu vos extermino e aniquilo agora mesmo. Desatai-o logo.
    O camponês baixou a cabeça e, sem responder uma palavra, desatou seu criado, a quem dom Quixote perguntou quanto seu amo devia. Ele disse que nove meses, a sete reais por mês. Dom Quixote fez a conta, viu que somava setenta e três reais e disse então ao camponês que os desembolsasse no mesmo instante, se não quisesse morrer. Medroso, o camponês respondeu que, pela situação em que se encontrava e pelo juramento que fizera — mas ainda não havia jurado nada —, não eram tantos, porque teria de descontar três pares de sapatos que lhe dera e um real por duas sangrias que lhe haviam feito quando esteve doente.
    — Está tudo muito bem — respondeu dom Quixote —, mas fiquem os sapatos e as sangrias pelas sovas que sem culpa lhe haveis dado: se ele arrebentou o couro dos sapatos que pagastes, vós arrebentastes o de seu corpo; e, se o barbeiro lhe tirou sangue quando esteve doente, vós o tiraste estando são. De modo que, por esse lado, não vos deve nada.
    — O problema, senhor cavaleiro, é que não tenho dinheiro aqui. Se Andrés vier comigo a minha casa, pagarei um real em cima do outro.
    — Eu, ir com ele? — disse o rapaz. — De jeito nenhum! Não, senhor, nem em pensamento, porque, ficando sozinho comigo, vai me esfolar como a um são Bartolomeu.
    — Não fará isso — respondeu dom Quixote. — Basta que eu mande para que me obedeça; e, desde que ele me jure pela lei da cavalaria que recebeu, eu o deixarei livre e garantirei o pagamento.
    — Senhor, olhe vossa mercê o que diz — disse o rapaz. — Meu amo não é cavaleiro nem recebeu ordem de cavalaria nenhuma; é Juan Papudo, o rico, morador de Quintanar.
    — Isso pouco importa — respondeu dom Quixote —, porque entre os fanfarrões também pode haver cavaleiros, sem falar que cada um é filho de suas obras.
    — Isso é verdade — disse Andrés —, mas de que obras meu amo é filho, se me nega meu salário, meu suor e trabalho?
    — Não nego, caro Andrés — respondeu o camponês. — Dai-me o prazer de vir comigo que eu juro, por todas as ordens de cavalaria que há no mundo, de vos pagar, como já disse, um real sobre o outro, benzidos ainda por cima.
    — Das benzeduras vos dispenso — disse dom Quixote. — Dai a ele os reais apenas, que com isso me contento, e não falteis com o que acabais de jurar, porque senão vos juro, pelo mesmo juramento, que voltarei para castigar-vos e hei de vos achar, mesmo que vos escondais melhor que uma lagartixa. E, se quereis saber quem vos ordena isso, para ficardes deveras obrigado a obedecer, sabei que eu sou o valoroso dom Quixote de la Mancha, o reparador de afrontas e injustiças. Ficai com Deus e não afasteis do pensamento o prometido e jurado, sob pena da pena pronunciada.
    E, dizendo isso, esporeou Rocinante e num instante se afastou deles. O camponês seguiu-o com os olhos e, quando o viu sair do mato e que já não aparecia, se virou para o criado Andrés e disse:
    — Vinde cá, meu filho, que desejo pagar o que vos devo, como aquele reparador de afrontas me ordenou.
    — Isso eu juro também — disse Andrés —, e como andará certo vossa mercê em obedecer às ordens daquele bom cavaleiro, que mil anos viva. Como é valente e bom juiz (que Deus o guarde), se vossa mercê não me pagar, que ele volte e execute o que disse!
    — Eu também juro — disse o camponês. — Mas, como vos quero muito, desejo aumentar a dívida, para aumentar o pagamento.
    E, agarrando-o pelo braço, voltou a amarrá-lo na azinheira, onde o surrou tanto que o deixou meio morto.
    — Chamai agora, senhor Andrés, pelo reparador de afrontas — disse o camponês —, e vereis como não repara esta. Na verdade, acho que ainda não acabei de cometê-la, porque tenho ganas de esfolar-vos vivo, como temíeis.
    Por fim, desatou-o e lhe deu licença para ir procurar seu juiz, para que executasse a sentença pronunciada. Andrés partiu um tanto desanimado, mas jurou procurar o valente dom Quixote de la Mancha e lhe contar tintim por tintim o que havia acontecido, e que seria pago com juros. De qualquer modo ele se foi chorando e seu amo ficou rindo.

Miguel de Cervantes, escritor espanhol (1547-1616), em seu "Dom Quixote"

Excerto de Eça de Queirós, ponderando sobre a consciência humana.

 


"Eu não construo os episódios da tua vida; assisto a eles e julgo-os placidamente... Sem que eu me mova, nem intervenha influência sobrenatural - tu podes ainda descer a misérias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraísos da terra e ser diretor de um Banco... Isso depende meramente de ti, e do teu esforço de homem... Escuta ainda! Perguntavas-me, há pouco, se eu me não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da minha voz... Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro deus criado pelos homens... Sou anterior aos deuses transitórios; eles dentro em mim nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim se dissolvem; e eternamente permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpétuo esforço de realizar fora de mim o deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me consciência;".

Eça de Queirós, escritor português (1845-1900), em sua obra "A Relíquia".

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Pandemia

Sei que o mundo já não é o mesmo.

Já não andamos, por aí, a esmo;

afastados da antiga vida.

Mas errado é pensar que ia

tudo ter um diverso termo

quando antes, já um outro enredo

nos tornava a vida mais vazia.

Outro vírus nos fazia ilha

forma ambígua de isolamento

convertendo todos os momentos

em escolha livre e egoísta.

E se o mal existe, já existia,

modulado no comportamento

que isola o ser humano há tempos,

pouco amor; essa é a pandemia. 



O amor, segundo a teoria dos jogos.