quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Consolação


Solene insone da urbana mata,
Das pedras tortas da calçada,
Deita no chão frio que abole
A moleza das carnes difamadas.
Olha o dossel das árvores gigantescas,
Móbile da coruja solidária
E pensa tu também que está
No ninho, como passarinho
Em noite enluarada.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Pastoreio

Levemente infenso ao que é normal
Vou tocando palavras do rebanho,
Achando às vezes tudo bom, tudo infernal,
No acidente eterno em que componho.

E nesse mar de algas naturais
Em que afogo mágoas sem tamanho,
Vou lançando minha rede nos corais
E tocando em águas-vivas do meu sonho.

Só me queimo quando acho tudo feio
E me fogem as reses todas que campeio
Qual vaqueiro sem gibão no espinhal.

Mas nunca penso em desistir do pastoreio
Pois circulando pelo campo sem receio
Encontro pedras preciosas no quintal.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Contraponto

Se a onda pequena a quebrar
Na rota madeira do cais,
Não fosse também o mesmo mar
Que assombra os desastres navais.

Se a brisa mais leve a soprar
Nas casas por entre os portais,
Não fosse o tornado a girar
Em loucas volutas mortais.

Jamais poderia entender
a mente que arde no verso
do anverso tão calmo do ser.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Poema de Ninar

Dorme, filha, sossegada
Que eu velo o sono inteirinho
Embora fique quietinho
Cuidando da madrugada.

Eu não sei bem o que vês
Com os olhinhos fechados.
O que terá te assustado
Que não consigo saber?

Não sei ao certo o que vem
Além de sonho ruim
Mas nada peço pra mim
Somente para você.

Que seja sempre feliz
Que a angústia não te veja
Na tua paz benfazeja
Não finque nunca a raiz.

Que a noite passa ligeiro
E o dia logo já vem
Que a vida passa também
Só o amor fica inteiro.

domingo, 26 de julho de 2009

Aquiles e a Tartaruga (ou A Encruzilhada)


Já não tenho mais o lenitivo da ignorância,
Nem espero imantada genialidade.
Já não creio nos senões que a esperança
Planta aleatoriamente em mocidade.

Estou sempre a meio passo da bonança
E em cada passo surda ansiedade,
Mas se colocar meus passos na balança
Verei que nada caminhei, dura verdade.

Sou como a seta imóvel em cada instante,
Sou como Aquiles perdido entre metades,
Imaginando um movimento entediante

Que sempre se cogita, mas não parte,
E a ver o alvo tanto mais distante
Quanto mais errante o passo sem vontade.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Observatório sincero

Não me peça para concordar com tudo,
nem que eu me cale, que fique mudo.
Não me peça para crer na história
que só você verte na memória.
Não me peça para não ver mais nada,
ou que não revele e siga na estrada.
Não me peça para crer que a cruz
Que diz ter sido imposta junto a ti,
Não seja você mesmo que a conduz
Porque só soube fazer o que bem quis.

sábado, 13 de junho de 2009

O tempo é pó



O tempo é pó nas mãos de quem
Sedento de mais, não consegue ver
Que todo momento é tempo de ser
Um homem completo, um alguém.

E crê que lhe falta o saber
Por não ter mais tempo, porém,
O tempo não falta a ninguém
Se a cada segundo é você

Que faz o tempo correr
Que faz o tempo parar
Que faz o tempo morrer.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Pintura



Sabe aquele quadro na parede da sala
De um barquinho, na paisagem, esmaecido?
Temo o que pode ter acontecido
Se um dia houver prosseguido sua viagem.

É que o mar está revolto e tudo em volta
Embota-se ante a fúria primitiva
E o céu mostra uma única gaivota
Que não tem onde pousar, pois voa aflita.

O sol já vai cedendo ao negrume
Em sinal de que a noite logo vem
A intempérie castigando  os que têm
Apenas os relâmpagos como lume.

A chuva atravessa a noite fria
E se abate, como corvo agourento,
Sobre o barco que aderna com o vento,
Arrastando-o em extrema agonia.

De minha cama imagino os movimentos.
Ansioso, fico tenso, sem dormir,
Em sopesar a sina que o mau tempo
Reservou para o barco em seu porvir.

Mas vencido de cansaço e de terror
Cerro os olhos pela madrugada
Esquecido, finalmente , em meu torpor,
Da tragédia que se abate em minha sala.

Porém, mal entra o sol pela janela
Assombrando o repouso tão culpado
Compelido, de meu sono sou levado
A observar destroços pela tela.

Corro até a sala. Enganara-me!
Na parede o mesmo barco a navegar
O sol não se punha, mas raiava,
E a gaivota avistara onde pousar.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Quadrinhas

Meu ofício
É como artesanato
Tanto mais aprendo
Quanto mais faço.

Minha dor
É minha companheira
Lança sem pudor
Âncora ligeira.

Meu amor
É como um velho vício
Tanto mais calor
Quanto precipício.

Minha vida
Pulsar de cursor
Que parece vida
No computador.

Teus olhos são
Fiéis depositários
De que o verso não é em vão
Nem solitário.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Carta à Musa

Jovem Mulher com a gloriosa manhã em seu cabelo, de Jules Joseph Lefebvre


Desculpe se só sei ser desse jeito
Humano ser cheio de defeitos
Sonhando com o inexistente ser perfeito
Que perfeito é apenas o sonhar.

Desculpe se sou falho, se me alheio,
Releve se não sei viver, se anseio,
Perdoe se só sei ser desse jeito
Desse jeito imperfeito de sonhar.

Se sou mesmo indecifrável, pleno, insano,
Se não passo de um terrível desengano
Descarta-me se não caibo no teu plano
Que um sonho é tão difícil de largar.

Mas se olhas no espelho e vês meu rosto
Nessa imagem, clara e límpida, teu sonho
E para além dessa imagem vês meu nome
Para além de um mero nome um ser humano.

Vem sentir a minha essência mais insone:
O desejo de sentir gosto por gosto
Cada parte desse amor que nos consome
E que some com uma parte desse todo.

Esquecimento

Ontem, hoje, amanhã,
Calendário mais perverso,
Quisera lembrar de ti,
Quisera, mas não consigo.

O rosto que me esquecia
Na fímbria do dia-a-dia
Ao mesmo tempo é eterno
Naquela fotografia.

Emoldurada e vazia
De qualquer significação,
Dormita na cabeceira,
Mas não em meu coração.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Oração

Gravura de Carlos Botelho



Peço-te lucidez, Senhor.
Rogo-te humildemente,
Em nome da terrena condição,
Que não me cegues neste labirinto
De paixões.
Que nele, aos tropeções,
Eu nunca chegue até onde, perdido,
O homem já não pode
Saber até que ponto é consentido
O jugo que sacode.

Miguel Torga.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Poema Vencido

Senti a mediocridade
Que agora creio inata
E um verso psicopata
Me chicoteia a verdade:

Não lutes mais com a palavra
Deixe-a em paz, sem saudade,
Vivas a vida que a idade
É conselheira sensata.

Desista de tudo e vejas
Como é tão leve a conduta
De arejar tua casa

Basta abrir as janelas
E rasgar as folhas brancas
Antes que fiquem amarelas.

quarta-feira, 18 de março de 2009

GARIMPO

É tempo de levar para longe
O que há de velho no horizonte
E fazer a prospecção dentro de nós,
Em que a escura noite grita sem ter voz.

Que esse garimpo intestino, de noss’alma
Presa entre escombros de tudo,
Não silencie ante a covardia que acalma
Antes do próximo absurdo.

Redescobrir a gema preciosa no gesto
De acolher a mão que pede como irmã
E reconhecer no olho o brilho do afeto,
Do afeto que nos traz a face sã.

É a única salvação para a humanidade
Olvidar os tesouros ilusórios, fome vã,
E ficar com os frutos da eternidade,
O simples abraço que ganhei esta manhã.

Não somos gente pelo que temos em nossa canastra
Nem pelo documento que carregamos no bolso
A cidadania é a ficção científica da canalha
Enquanto é imolado o ser humano o tempo todo.

sábado, 7 de março de 2009

BIODIVERSIDADE (do poeta Paulo Henriques de Britto)



Resultado de imagem para paulo henriques britto

Há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,
que não requerem prática, oficina, suor.
Maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor.

Porém há quem se preste a esse papel esdrúxulo,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.

Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é uma voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,

câmbio? Quem sabe esses cascos invertidos,
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?

Paulo Henriques de Britto, poeta brasileiro (n. 1951), poema do seu livro Macau, Ed. Companhia das Letras.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Soneto da Filha Adormecida


Todas as noites vejo o rosto sereno
E a respiração calma que a veste
Olhando para tudo e percebendo
Apenas onde pousa tão celeste.

E na penumbra do quarto compreendo
Que existe algo concreto como o ar
A invadir os pulmões em sorvo ameno
Como o ato vital de respirar.

Mas para bem dizê-lo falta à pena
Apreender o mais puro sentimento
Que surge, por encanto, dessa cena.

Pois quanto mais a diviso menos tento
Entender esse amor que se contenta
Apenas com a beleza do momento.

Redoma

Dentro dessa redoma
De um vidro fosco e sujo
Respingado pela lama
Fujo, fujo, fujo, fujo.

Mas volto ao centro de tudo
Se vou de encontro ao vidro
Barra-me a fuga e, confuso,
Fico, fico, fico, fico.

Já não sei o que se passa
Nessa redoma invencível ,
Mas é a vida, mais nada,
E vivo, vivo, vivo, vivo.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Quero Ignorado (Fernando Pessoa na veia)

Gravura de João Luiz Roth

Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada 'spera
Tudo que vem é grato.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

CANSAÇO


O cansaço consome meu corpo
Como um cancro enraivecido,
Destrói ao criar o novo
Ensandecido tecido.
Insidioso qual cobra,
Qual óleo em mim escorrido,
Qual febre que se renova,
Qual tiro sem estampido,
Convolado em epicentro
de centenas de outros sismos.

Cansaço do corpo e d’alma,
Das ilusões juvenis,
Da sensação de que acaba
o tempo de ser feliz.
Cansaço de olhar e ver
O fato de existir,
E de tentar resolver
O que não pode ter fim.

O cansaço me consome
como ácido, corrosivo,
que desce pela garganta
como este ar que respiro
no dia a dia que espanta
os motivos do motivo
e faz-me indagar, no fim,
se é o bastante estar vivo.

PENSAMENTO

Pens
A
Mento
Penso
E
Minto
A
Pensa
Mento
Apenso
Apenas
Penso
E
Sinto.

POEMA ANTIAÉREO

O meu salto
Paralisado no ar
Para sempre interrompido
Impossível de acabar
Prolonga-se indefinidamente
Até que o chamam voar.

O dorso expande-se
O tecido cede
As asas aparecem
E descubro-me anjo.

Conduzo-me no espaço
Afastado de rompantes
De tropéis alucinantes
Na santa paz dos infantes
Despido de qualquer fado.

Mas se o meu vôo, de repente,
redescobre-se salto
redescobre-se passo
redescobre-se homem?

Conduzo-me porque é vasto
Também o chão arredio
A beleza desse rio
Em que mergulho, tão frio,
Para ficar acordado.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Prefácio de Projeto

Meu chocalho de palavras,
Ao teu ouvido balanço,
Se nada te despertar,
Que te sirva de acalanto.

Se não provocar tua ira,
Ao menos te faça manso,
Se não te der alegria,
Que te liberte esse pranto.

Se não durar pela vida,
Que dure só o instante,
Em que tudo que precises,
Tenha o seu exato alcance.

Suspense Non Sense

O suspense dos passos na escada
faz nascer no peito do amante
o desejo de que seja sua amada
e não perdure a ausência um só instante.

Mas o tempo arrasta-se, irritante,
e os passos vêm com mora decretada
galgando mil andares ressoantes
em “plic placs” de ânsia renovada.

De súbito retorce-se na cama
o amante impaciente que reclama
a falta que lhe faz a companheira

Corre à porta que a batida já o chama,
abre-a rápido, mas o amor ali proclama
para o zelador à espera da lixeira.

Passeio

UM DIA A CECILIAR,
TORQUATEANDO CHEGUEI,
AUGUSTO, MAS A CHORAR,
DOS ANJOS ME ACERQUEI.

E ME PUS A PERGUNTAR,
ONDE MORAES EU NÃO SEI,
LEMINSKI A SE DEMARCAR,
COM CRUZ QUE NUNCA CRAVEI.

PESSOA JÁ NÃO SEREI!
QUENTAL A GENTE SONHAR,
PARA CAMÕES TRABALHAR,
ONDE NERUDA PLANTEI?

MAS EU ANDO DEVAGAR,
COMO QUEM SEGUE QUINTANA,
SE UM DIA A CARLOS CHEGAR,
À BANDEIRA MINHA HONRA.

Madrugada

De madrugada, o pavor,
Pavio de vela acesa,
Medo de escuro, o calor
Pesando em minha incerteza.

E o sono que não chegou!
Olhando os ratos nas telhas,
Deito no chão que esfriou,
Sentindo olhares de esguelha.

- Não desafio ninguém nem nada!
- Vade retro satanás!
Grito o mantra protetor.

Rasga mortalha cantou,
No telheiro da igreja,
No momento em que estalou,
Lá em cima o que quer que seja.

Grito o mantra protetor:
- Deus do céu nos proteja!
A vela já se apagou,
E o sono não me chega!

Mas se eu sou um bom menino,
Que de Deus nunca duvidou,
Só o mal perde a peleja,
Que não sei quem começou.

- Viva os noivos sem pano sem linha e sem agulha!
Grito o mantra protetor.

De repente, funcionou!
Um milagre me corteja:
Foi o dia que raiou
Na manhã mais benfazeja.

Fragmento de Confissão

Quando era menino jogava cubos de gelo ao sol somente para vê-los derreter...
E via a água aflorar lentamente da superfície dura e escorrer para o chão à guisa de sangue perdido em grave hemorragia...
Sem direito à transfusão, eu os via se acabarem agonizantes, daquele pequeno ato de crueldade ignorantes.
Agora, adulto, falta-me o verso, mas não o sentimento...
Pois sei que vida afora, em cada instante,
Ainda quantos cubos jogamos ao relento!

Cemitério

As sebes do cemitério
guardam a única certeza
que é um grande mistério.