segunda-feira, 27 de abril de 2020

Excerto de Aldous Huxley, refletindo sobre o tempo concretizado no presente.

Aldous Huxley – Wikipédia, a enciclopédia livre


"O relógio tiquetaqueava. O instante em movimento que, segundo Sir Isaac Newton, separa o passado infinito do infinito futuro avançava inexoravelmente através da dimensão do tempo. Ou, a crer em Aristóteles, um pouco mais do possível a cada instante se tornava real; o presente imobilizava-se e ia incorporando a si o futuro, como um homem que ficasse engolindo para sempre uma fita de macarrão sem fim."

Aldous Huxley, 1894-1963, em seu romance "Contraponto".

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Excerto de Cervantes, no qual, dentre outras reflexões, preconiza a liberdade feminina e lhe recusa o papel de "objeto".



Miguel de Cervantes - Biografia - UOL Educação


O céu me fez formosa, dizeis, e de tal maneira que minha formosura vos leva a me amar sem resistência, e pelo amor que me mostrais, dizeis e até quereis que eu seja obrigada a vos amar. Eu sei, com o natural entendimento que Deus me deu, que tudo o que é belo pode ser amado; mas não compreendo que, pela razão de ser amado, quem é amado por belo tenha obrigação de amar quem o ama. E ainda poderia acontecer que o amante do belo fosse feio e, sendo o feio digno de ser desprezado, fica mal dizer: ‘Amo-te porque és bela: deves me amar embora eu seja feio’. Mas, mesmo que as belezas se equivalham, nem por isso haverão de ser iguais os desejos, pois nem todas as belezas apaixonam: algumas alegram a vista mas não subjugam a vontade. Se todas as belezas apaixonassem e subjugassem, as vontades andariam desorientadas e confusas, sem saber onde iriam parar, porque, sendo infinitas as pessoas belas, infinitos haveriam de ser os desejos. E, conforme ouvi dizer, o amor verdadeiro não se divide e deve ser voluntário, não forçado. Sendo assim, como penso que é, por que quereis que submeta minha vontade à força, apenas porque me dizeis que me amais? Se não, dizei-me: se em vez de formosa o céu me tivesse feito feia, seria justo que me queixasse de vós por não me amardes? Depois, deveis considerar que eu não escolhi: o céu deu-me a beleza que tenho de graça, sem que eu a pedisse nem escolhesse. E, assim como a víbora não merece ser culpada pelo veneno que tem, apesar de matar com ele, porque lhe foi dado pela natureza, também eu não mereço ser repreendida por ser bela: a beleza na mulher honesta é como o fogo afastado ou como a espada afiada, porque nem ele queima nem ela corta quem deles não se aproxima. A honra e as virtudes são adornos da alma, sem os quais o corpo não deve parecer belo, embora o seja. Pois, se a honestidade é uma das virtudes que ao corpo e à alma mais adornam e embelezam, por que deve perdê-la a que é amada por ser bela, para satisfazer a intenção daquele que, apenas para seu próprio prazer, com todas as suas forças e astúcias procura que a perca? “Eu nasci livre e, para poder viver livre, escolhi a solidão dos campos: as árvores destas montanhas são minha companhia; as águas cristalinas destes riachos, meus espelhos; às árvores e às águas comunico meus pensamentos e formosura. Sou fogo afastado e espada distante. Aos que apaixonei com a vista desiludi com as palavras; e, se os desejos se sustentam com esperanças, não tendo eu dado nenhuma a Grisóstomo, nem a algum outro (na verdade, a nenhum deles), bem se pode dizer que antes o matou sua teimosia do que minha crueldade. E, se alegardes que seus pensamentos eram honestos e que por isso estava obrigada a satisfazê-los, digo que quando me revelou a honestidade de sua intenção, neste mesmo lugar onde agora se cava sua sepultura, eu disse a ele que a minha era viver em perpétua solidão e que apenas a terra gozasse o fruto de meu recolhimento e os despojos de minha formosura; e se ele, apesar de tudo, quis lutar contra a esperança e navegar contra o vento, quem se admira que se afogasse no meio do oceano de seu desatino? Se eu o encorajasse, seria falsa; se o contentasse, seria contra minhas melhores intenções e propósitos. Teimou desiludido, desesperou sem ser desprezado: vede então se deve se jogar em mim a culpa de sua pena! Queixe-se o enganado; desespere-se aquele a quem faltaram as prometidas esperanças! Tenha confiança o que eu chamar; gabe-se o que eu aceitar. Mas não me chame de cruel nem de homicida aquele a quem eu não prometo, não engano, não chamo nem aceito. “Até agora o céu não quis que eu amasse por destino, e pensar que eu tenho de amar por escolha é inútil. Que esse desengano geral sirva de lição, para seu particular proveito, a cada um dos que me cortejam, e que se entenda daqui por diante que, se algum morrer por mim, não morre de ciúmes nem de infelicidade, pois quem não ama ninguém a ninguém deve causar ciúme, pois os desenganos não devem ser tomados por desdéns. O que me chama de fera e basilisco, deixe-me como coisa nociva e má; o que me chama de ingrata, não me corteje; de mal-agradecida, não me conheça; de cruel, não me siga; porque esta fera, este basilisco, esta ingrata, esta mal-agradecida e cruel nem vos procurará, cortejará, conhecerá nem seguirá de forma alguma. “Se a Grisóstomo matou sua impaciência e desejo impetuoso, por que se deve culpar meu honesto procedimento e recato? Se eu conservo minha pureza em companhia das árvores, por que devem querer que a perca em companhia dos homens? Como sabeis, sou rica e não cobiço as riquezas alheias; sou de temperamento livre, não gosto de me sujeitar; não amo nem odeio ninguém; não engano este nem cortejo aquele; não zombo de um nem me divirto com outro. A conversa honesta das pastoras destas aldeias e o cuidado com minhas cabras me distraem. Meus desejos se limitam a estas montanhas e, se daqui saem, é para contemplar a formosura do céu, passos com que anda a alma para sua primeira morada.”

Miguel de Cervantes, 1547-1616, dando voz à pastora Marcela, em seu "Dom Quixote"