sábado, 30 de janeiro de 2010

Outro Mundo


A menina correu, com delicadeza, sobre os sinuosos padrões geométricos, em preto e branco, que pavimentavam toda a extensão do passeio ao longo da Avenida Atlântica. Passou pelo banco onde a estátua de Carlos Drummond de Andrade repousava sossegado e finalmente pousou, como borboleta, no colo do pai, que olhava distraidamente para longe, onde ar e água se separavam apenas por uma tênue linha. Àquela altura, fim de tarde, a maré baixa fazia com que pequenas marolas morressem entre espumas. As quadras já estavam vazias e os poucos jogadores remanescentes conversavam displicentemente, celebrando o cansaço fútil.

- Pai? – chamou a menina, tirando-o da contemplação marítima.

Mas o pai não lhe prestou atenção. Baixou os olhos para a mesa, onde repousava um notebook em que ele lia alguma coisa a espaços regulares.

- Pai, vamos conhecer o Forte hoje? Você prometeu!

- Agora não.

- Pois então vamos dar um passeio?

- Hoje não, filhinha, papai tá pesquisando uma coisa!

- Que coisa?

- Uma coisa, filha.

- Que coisa? – ela insistiu, curiosa.

- Uma viagem.

- Pra onde? Pra Disney?

- Não, pra um lugar mais legal. Um dia vamos conhecer o Caribe! Não é ótimo?

- Não sei. O que tem lá?

Ele refletiu por um momento. Queria que a filha de cinco anos entendesse o quanto aquela viagem, que ele sonhava em realizar dentro de alguns anos, seria uma coisa extraordinária.

- Ah filha, lá é muito bonito!

- Bonito como?

- Tem tudo que tem aqui, só que muito mais bonito!

- Tem o Forte, o Cristo, o bondinho?

- Não, mas deve ter muitas outras coisas interessantes por lá.

- O que, por exemplo?

- Por exemplo – ele pensou por um minuto antes de responder – Por exemplo, dá pra ver os peixinhos na água. É cristalina!

- O que é cristalina?

- É transparente.

- Ah, como no aquário lá de casa?

Embora ele achasse que a comparação desmerecia o Caribe, acabou por concordar para encurtar a conversa. Baixou os olhos novamente para a tela, em que trocava mensagens com uma agência de viagem.

- Pai! Olha que bonito! – E a menina apontou, para além dos banhistas, um grande transatlântico que passava ao largo.

- É, filha, é num desses que a gente vai viajar um dia – disse o homem, mal olhando.

Depois de algum tempo a menina voltou à carga:

- Pai, quando vai ser esse dia?

- Não sei, filha, ainda estou pesquisando.

-E agora? Agora a gente pode dar um mergulho? Tá tão bom! – suplicou a menina, lançando olhares de cobiça para as minúsculas piscinas que se formavam com a vazante.

- Não! Tô ocupado filhinha! Agora você vai brincar e deixar o papai olhar isso aqui, certo?. -E se curvou sobre o computador, deleitando-se com uma apresentação de imagens paradisíacas que a agência lhe havia mandado.

Enquanto a filha borboleteava em volta, o homem nem sequer percebeu que a tarde morria, banhando, com seus matizes sanguíneos, o Forte, os prédios, as pessoas, a menina, a si próprio e o computador, que luzia e luzia com as maravilhas de um outro mundo.

Márcio Ibiapina

sábado, 23 de janeiro de 2010

Nova Arquitetura

O pensar é sorte.
Abandone o macio,
No mar de escombros
Construo sonhos
Ou arquiteto o vazio.

O teto sustenta-se sem paredes?
O homem contenta-se em ser ele?
Há tanta coisa à minha frente
Que não enxergo a parede,
Mas somente o horizonte.

Errata Para Olhos Alheios

Você que me vê a tremer,
Saiba que não tremo.
Sou tremido.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Semeadura


O futuro túmulo, nem escavado,
Ainda chão, sem mais nem nada,
Seco ou, na chuva, enlameado,
Pasto da grama que brotava,

Por entre os sulcos do cercado,
Como da cerca de uma casa,
Vivia em repouso decantado,
Sem saber o que esperava.

Quando, enfim, tempo chegado
De servir ao que prestava,
O que lhe havia reservado
O destino que mandava.

Não era o algaravio do arado
que em sulcos lhe rasgava
o ventre retangular.

Mas o esquife lacrado,
Qual semente que tornava
Depois de frutificar.